sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Chico Buarque e a Grandiosidade de "Construção"

Em 1970, o carioca Chico Buarque de Hollanda já era um dos mais respeitados cantores/compositores da MPB. Estava vivendo em seu autoexílio na Itália a aproximadamente um ano, depois de ver a ascensão do regime militar e sua forma truculenta de comando.



De longe acompanhou os artistas serem criativamente podados. Quem se manifestasse contra o regime certamente sofreria severas represarias.
Em contrapartida o Brasil estava em franco crescimento econômico, as oportunidades multiplicavam-se e prometiam tirar o povo da miséria. Artigos antes considerados luxuosos, agora podiam ser adquiridos pelo cidadão assalariado comum, batedor de ponto, que derrama seu suor para dar a mínima dignidade a sua família.
A propaganda pregando patriotismo estava em todos os lugares, e muitas pessoas faziam vistas grossas para a violência do regime Médici iludidas pelo chamado “Milagre Brasileiro”.

Ouviu de lá que em dezembro de 1968 seus amigos Gilberto Gil e Caetano Veloso foram presos e torturados por encabeçar o movimento de contracultura denominado Tropicália, considerado uma ameaça à soberania do governo brasileiro. Foram soltos só em 1969, sob a condição de sair do país. Depois de passagens por Lisboa e Paris exilaram-se em Londres.
Geraldo Vandré sofreu com o mesmo problema por compor “Para Não Dizer Que Não Falei das Flores”, preso e torturado até a beira da loucura, foi expulso do país e buscou exílio na Europa.
Até mesmo o poeta Vinícius de Moraes que exercia cargo diplomático a mais de 20 anos foi perseguido pelo exército. Acusado de vagabundagem foi compulsoriamente aposentado do exercício de suas funções.

Foi inclusive o próprio Vinícius de Moraes que aconselhou através de uma carta que Chico voltasse fazendo barulho.
Quando finalmente voltou ao Brasil em 1970 trouxe consigo a dura crítica de “Apesar de Você”. Música amplamente censurada, teve todas suas cópias recolhidas quando os censores pescaram as referências ao governo.
Na Itália Chico já trabalhava em outras canções, muitas delas fizeram parte de seu próximo álbum nacional. Construção de 1971.

Apesar de como um todo funcionar muito bem, Construção tem em sua faixa-título o momento mais brilhante do álbum.
Situada na quarta faixa do primeiro lado, “Construção”, a canção, é liricamente apaixonante. Seus versos possuem um espirito épico como a ópera. Com um interessante jogo de palavras, onde a cada uma das partes são trocadas as proparoxítonas finais de cada verso alterando o sentido da frase, o que faz parecer a mesma história de pontos de vista diferentes.
Suas estrofes são repetidas por duas vezes e meia antes de cair num trecho de “Deus Lhe Pague” – canção que abre o disco.
A música começa com uma base criada em cima de dois acordes de violão e vai crescendo gradualmente, ganhando corpo com instrumentos percussivos típicos do samba e uma orquestra conduzida pelo maestro Rogério Duprat que dá um ar dramático a obra. O grupo vocal MPB4 ajudou com as harmonias vocais.
É literalmente uma construção que começa do zero e vai ficando robusta até ganhar sua forma final.

A tônica por trás de “Construção” é extremamente indigesta. Surpreende ela ter feito tanto sucesso mesmo abordando um tema pesado.
Chico Buarque já declarou que não tentou escrever uma canção de protesto nem se inspirou em fatos reais em sua composição, mas a história do operário da construção civil que sai todos os dias cedo para ganhar o pão da família com muito suor e as vezes sangue é extremamente palpável.
Uma dura crítica ao capitalismo, as parcas condições de trabalho, a sociedade cada vez mais egoísta e consumista.
Todos temas que ainda hoje estão em voga – talvez ainda mais acentuados do que nunca.

Hoje em 2015, ouvir “Construção” soa aos meus ouvidos como outros grandes épicos da música do século XX. Seu poder a eleva um degrau mais alto que qualquer outra coisa produzida por Chico Buarque antes ou depois e quebra qualquer barreira de gênero tornando-se atemporal.
Fica na minha concepção no mesmo patamar de “Kashmir” do Led Zeppelin ou “Stargazer” do Rainbow, por exemplo. Pode não ser a melhor, ou até minha música favorita dentre muitas do mesmo artista, mas seu nível a coloca em outra dimensão.
Sua grandeza é maior que toda a obra, portanto não pode ser comparada a mais nada, pois simplesmente não encontraríamos paralelos.



Construção

(Letras por: Chico Buarque de Hollanda)

“Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.”

“Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público.”

“Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado.”

“Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague.”

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